28 Setembro 2021
Lemos as declarações do Papa Francisco durante a viagem de volta de Bratislava e nos sentimos chamadas como mulheres de fé a um pronunciamento público. Em seu discurso sobre o aborto - definido como assassinato: “O aborto é um homicídio ... é correto contratar um sicário para resolver um problema?" - a palavra mulheres não foi pronunciada e mesmo em ocasiões semelhantes eles não fez menção às mulheres. Esta omissão representa uma reticência carregada de significados, pois não se pode negar que justamente as "inominadas" mulheres sejam as destinatárias privilegiadas dessa "alocução”, visto que são elas que - lastimavelmente - recorrem à interrupção voluntária da gravidez.
A reportagem é de Observatório Inter-religioso sobre a violência contra as mulheres e Associazione Donne per la Chiesa, publicada por Fine Settimana, 26-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por isso, aqui devemos tomar palavra pública sobre a intervenção do Papa, aquela palavra pública que não encontra cidadania nos sínodos e concílios da Santa Madre Igreja, porque não podemos admitir que, em uma matéria tão importante, a soberania absoluta e o juízo moral inapelável caibam a quem - homens - por milênios se arrogaram o poder de controlar os âmbitos da geração e da reprodução, territórios puramente femininos. O Papa demonstrou em tantas matérias que sabe muito bem entrelaçar argumentações baseadas em um método holístico (por exemplo, na ecologia integral da Encíclica Laudato si' e sobre a insistência sobre o discernimento caso a caso que emerge em Amoris Laetitia).
Mas se o tema é o aborto, as palavras tornam-se pedras atiradas contra as mulheres e falta – falta culposamente - um raciocínio que leve em conta os múltiplos fatores envolvidos e que hospede o ponto de vista da outra/o. Por que tanta dureza de coração? Por que aqui o raciocínio se torna asfixiado e monolítico? Por que não se leva em conta que o embrião, sozinho, não poderia existir e se anulam, se faz terra arrasada das exigências da mulher e das responsabilidades do homem?
No entanto, o embrião precisa do útero da mãe para ter condições vitais de crescimento e a mãe não pode ser reduzida a um recipiente. A mulher é uma vida, uma pessoa. Por que a anular ou subordinar, algo que acontece quando se diz que "o feto é sagrado" sem lembrar também a sacralidade dela? A complexidade da questão não exigiria pelo menos levar em conta o fato de que são sobretudo as mulheres em situação de pobreza e/ou dos países pobres as mais induzidas a ter que recorrer à interrupção da gravidez? E que muitas vezes morrem ou ficam com problemas?
Como pode a Igreja ignorar as dificuldades de acesso para as mulheres africanas à contracepção oral - porque outros métodos anticoncepcionais são impedidos por seus parceiros - também por causa da oposição que encontram nas estruturas sanitárias católicas, muitas vezes as mais acessíveis em seu contexto? E como não falar sobre o fato de que a esfera da sexualidade é dominada pelos desejos e exigências masculinas? E que a Igreja Católica com seus ensinamentos sobre a "dívida matrimonial" é parte integrante desse modelo de prevaricação sexual do homem sobre a mulher? Em que desafio educacional a Igreja Católica se empenha a superar a cultura patriarcal, que dá uma representação do desejo masculino como um impulso "justo", sinal de virilidade "natural e sadia", negligenciando as consequências a que o comportamento masculino pode levar, tanto em relação ao desejo feminino quanto em relação a uma eventual gravidez?
E, por fim, a questão principal: por que a Igreja não empreende exemplarmente em uma análise sistemática dos fenômenos ligados a uma sexualidade masculina predatória? Feminicídios (só nos últimos dez dias foram mortas 8 mulheres; 86 desde o início do ano, das quais 72 por maridos, parceiros, etc.), estupros, turismo sexual, pornografia, prostituição, publicidade ofensiva ... E desses aspectos não está isenta uma parte do clero católico, como sabemos. Em conclusão, gostaríamos de uma abordagem integral quando se fala de aborto, um empenho ativo para promover uma mudança radical na mentalidade masculina e uma promoção efetiva das mulheres, de seu trabalho e de sua segurança pessoal.
Por último, mas não menos importante, esperamos que a consciência das mulheres seja reconhecida e vista com infinito respeito, mesmo quando optam ou são obrigadas a interromper a gravidez. Transformar a vítima em acusada é uma inversão que vem sendo feita há milênios, mas que não honra o Papa, porque as sabedorias nas quais está contido o depósito de ouro que é o divino não falam dessa língua! Cada uma de nós, de fato, tem seu próprio diálogo - um diálogo livre - com Deus ou com o divino que a acompanha. Nós sabemos disso e continuamos a anunciá-lo.
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“A vítima é transformada em acusada”. Sobre as declarações do Papa Francisco a respeito do aborto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU